OS 105 ANOS DA MORTE DE MARANHÃO SOBRINHO
“A minha admiração, ou melhor, o meu fanatismo pela
obra poética de Maranhão Sobrinho é tão grande que já tive a coragem, numa
conferência, há oito ou dez anos atrás, de dizer, alto e a bom som, que
Maranhão Sobrinho é o maior poeta nacional de todos os tempos.”
Assis Garrido
Da mesma opinião é Antonio Lobo, que, a despeito de lhe ter negando a
“supremacia entre os poetas do seu tempo”, confessou: “Mesmo entre os grandes
consagrados da poesia brasileira atual, raros serão os que o excedam na
fecundidade pasmosa da produção e na perfeição artística da forma”. “Ainda hoje
seus versos são lidos e recitados com volúpia pela beleza emocionante das
estrofes e o apuro artístico da forma e da límpida inspiração”, disseram dele
os organizadores da Antologia da Academia Maranhense de Letras, Mário Meireles,
Arnaldo de Jesus Ferreira e Domingos Vieira Filho.
Afirma
Clovis Ramos que Maranhão Sobrinho, “na sua fase inicial”, fora parnasiano, o
que contraria as marcantes efusões sentimentais presentes em seus primeiros
trabalhos, que, para Fabrício Diniz (1902), eram dignos de “figurar ao lado de
qualquer produto do mavioso poeta das Espumas Flutuantes”. No que Josué
Montello vai concordar ao dizer que “suas primeiras composições qualificaram-no
de condoreiro”. E completa o escritor e crítico o seu raciocínio: “Mas o que
ele realmente viria a ser era simbolista, talvez o maior da língua, o mais
delicado, o mais terno, o mais rico, esquecendo mesmo o negro rouxinol de
garganta de prata, esse João da Cruz e Souza”.
Nasceu José
Américo Augusto Olímpio Cavalcante de Albuquerque Maranhão Sobrinho no dia 20
de dezembro de 1879, em Barra do Corda, onde também começou a sua vida poética
e jornalística, militando, ainda adolescente, no “Campeão”, “O Norte”, “O
Guarany” e “O Porvir”, do qual foi redator-chefe, além de primar nas “efêmeras
associações literárias de que abundava a Barra do Corda daqueles tempos”. Seu
mais célebre soneto, “Soror Teresa”, ele o compôs, segundo o conterrâneo Isaac
Ferreira, ainda em Barra do Corda. Mas é em São Luís, para onde seguiu em
1900, que o poeta, após ler, no
original, os versos de Mallarmé, Baudelaire e Verlaine, vai aderir à escola
simbolista, tornando-se do “divino Estefânio” o mais legítimo êmulo. Esta
escolha, porém, fê-lo amargar constantes dissabores, do que é prova o fracasso do “Apostolado Cruz
e Souza”, agremiação por ele fundada e que, por falta de adesões e pelas mordazes
críticas, não logrou êxito.
A rejeição
ao decadentismo sobrinhiano deveu-se, mais que ao isolamento cultural da
província de então, ao prestígio que por muito tempo conseguiram conservar
certas maneiras parnasianas, e à formação e temperamentos tradicionalistas,
receosos da aventura estética, de grande parte de seus próceres. É bom lembrar,
no entanto, que o romantismo-parnasianismo em Maranhão Sobrinho opera a nível
inconsciente, como uma “influência” da qual procurava escapar, enquanto que o
simbolismo, por outro lado, pelo fluxo consciente, como uma “preferência” (o
que é facilmente percebido quando comparamos as “emendas” de alguns poemas
antes e depois do prelo), o que acabou por caracterizar somente uma parcela
ínfima no todo de sua obra. Enquanto “simbolista ortodoxo”, como muito bem observou
Andrade Muricy, Maranhão Sobrinho não cantou uma Barra do Corda à descoberto,
em linguagem direta, mas difícil é não vê-la a bailar flagrantemente
“insinuada” em muitas de suas composições, de que são exemplos os sonetos
“Evocações”, “Doce Visão”, “A Ermida” e “Sertões”.
Maranhão Sobrinho, em 1913 |
Um dos fundadores da Oficina dos Novos e da Academia
Maranhense de Letras, na qual ocupou a cadeira 19, patrocinada por Teófilo
Dias, Maranhão Sobrinho traduziu obras importantes da literatura universal,
como as “Fábulas” de La Fontaine e as “Poesias” de Lessing.
Publicado
“Papéis Velhos”, livro de poemas predominantemente “roídos pela traça do
Símbolo”, e “Estatuetas”, em que sobressai o descritivismo e a “preocupação
joalheiresca do camafeu”, Maranhão Sobrinho abandona o discipulado mallarmaico
e seu tão reiterado sonho de publicar
sua obra “definitiva” pela Garnier ou Laemmert, viaja para Manaus e volta a conceber
poemas de cunho romântico, de que é exemplo “Vitórias-Régias”, seu último
trabalho antes de morrer, em 25 de dezembro de 1915. Maranhão Sobrinho, cuja
obra poética inscreve-se ao nível do que melhor se tem produzido na literatura
maranhense, tendo sido também um dos fundadores da Academia Amazonense de
Letras, é homenageado postumamente como patrono da Cadeira nº 7 daquela
entidade; é também patrono da Cadeira nº 21, da Academia Maranhense de Letras,
e da de nº 19, da Academia Barra-Cordense de Letras, também chamada “Casa de
Maranhão Sobrinho”, o silogeu barra-cordense.
Quando Josué
Montello sugeriu a Manuel Bandeira alguns nomes de poetas maranhenses para
compor sua antologia simbolista[1],
de seleção muito mais rigorosa que a de Andrade Muricy, limitou-se a dizer-lhe:
“Com o mestre dos Papéis Velhos, o Maranhão está muito bem representado”[2].
O
MAR
Ouve!
O mar, escarpando as rochas, na agonia
Do
sol, parece ter na voz o humano acento
De
dor! Reza, talvez. Vai recolher-se. O dia
Se
ajoelha e a tarde, em sonho, abraça o firmamento!
Como
nós, pode ser que a tristeza e a alegria
O
mar sinta também; precisa, em movimento,
Trazer
um coração... quem sabe o que irradia,
No
seu íntimo, em doce e azul recolhimento!
Escuta!
Uma onda vem beijar-te os pés. Não há de
Calma
os seios rasgar sobre os basaltos. Quérulas
As
ondas todas são. Ouve-lhe a voz. Piedade!
O
mar leva-me a crer que tem paixões mortais
Em
que rolam, brilhando, as lágrimas das pérolas
E
palpita, fervendo, o sangue dos corais...
SOROR
TERESA
...
E um dia, as monjas foram dar com ela,
Morta,
da cor de um sonho de noivado,
No
silêncio cristão da estreita cela
Lábios
nos lábios de um Crucificado...
Somente
a luz de uma piedosa vela
Ungia,
como um óleo derramado,
O
aposento tristíssimo de aquela
Que
morrera num sonho sem pecado.
Todo
o mosteiro encheu-se de tristeza,
E
ninguém soube de que dor escrava
Morrera
a divinal soror Teresa...
Não
creio que do amor a morte venha,
Mas,
sei que a vida da soror boiava
Dentro
dos olhos do Senhor da Penha...
D.
MÍSTICA
Quando
amorte velar os meus olhos e as minhas
Mãos
tremerem nas mãos, que me estendes, nervosas,
Seja
o meu beijo, ó flor, o último! nas rosas
Do
teu rosto! Sonhei que à minha morte vinhas...
Hei
de, em ânsias cruéis, cingir-te e, com as chorosas
Crenças
n’alma a emigrar com asas de andorinhas,
Dizer-te
o meu adeus, o último! nas vinhas
Ouvindo
o soluçar das rolas amorosas!
E
se dos olhos teus, no sagrado transporte,
Na
agonia, rolar uma lágrima viva,
Então
verei o céu antes de ver a morte!
Santa,
a sombra já vem, nos olhos tenho-a aberta!
E
uma alma que viveu de uma outra alma cativa,
Nem
nas nuvens do céu pode viver liberta!
SATÃ
Nas
margens de cristal do Danúbio do Sonho,
Cromadas
de rubis, de pérolas purpúreas,
Vê-se
o imenso solar sonolento e medonho
Do
dragão infernal das Princesas espúrias...
Guarda
o nobre portal de alabastro tristonho
Desse
antigo solar de malditas luxúrias,
Em
que fulge o brasão heráldico do sonho
Não
sei quantas legiões de duendes e fúrias!
Sobre
o mármore azul das colunas austeras,
Que,
em noivados de luz, o luar engrinalda
Brilha
o vivo cristal de alígenas quimeras...
Velam
desse dragão o oriental tesoiro,
Sobre
um trono de rei, de maciça esmeralda,
Dois
soberbos leões, de grandes patas de oiro...
INTERLUNAR
Entre
nuvens cruéis de púrpura e gerânio,
Rubro
como, de sangue, um hoplita messênio
O
sol, vencido, desce o planalto de urânio
Do
ocaso, na mudez de um recolhido essênio...
Veloz
como um corcel, voando num mito hircânio,
Tremente,
esvai-se a luz no leve oxigênio
Da
tarde, que me evoca os olhos de Estefânio
Mallarmé,
sob a unção da tristeza e do gênio!
O
ônix das sombras cresce ao trágico declínio
Do
dia que, a lembrar piratas do mar Jônio,
Põe,
no ocaso, clarões vermelhos de assassínio...
Vem
a noite e, lembrando os Montes do Infortúnio,
Vara
o estranho solar da Morte e do Demônio
Com
as torres medievais as sombras do Interlúnio...
(Papéis
Velhos/1908)
TELA
DO NORTE
No
estirão, percutindo os chifres, a boiada
Monótona
desliza; ondulando, a poeira,
Em
fulvas espirais, cobre toda a chapada
Em
cujo poente o sol põe uns tons de fogueira.
Baba
de sede e muge a leva; triturada
Sob
as patas dos bois a relva toda cheira!
Boiando,
corta o ar a mórbida toada
Do
guia que, de pé, palmilha à cabeceira...
Nos
flancos da boiada, aos recurvos galões
Das
éguas, vão tocando as reses fugitivas
Os
vaqueiros, com o sol nas pontas dos ferrões...
E,
do gado ao tropel, com as asas derreadas
Quase
riscando o chão, que o sol calcina, esquivas,
Arrancam
coleando as emas assustadas...
ITÁLIA
Itália!
Os laranjais em flor. Veneza
Sobre
os canais feéricos boiando,
Qual
cisne de asas múltiplas, cortando
Um
mar de sonhos, a beber turquesa!
Paolo
e Francesca! As pombas no alto, em bando,
Nas
tardes de veludo e de tristeza,
Em
volta de uma torre milanesa,
O
eco de arrulhos brancos povoando...
Itália!
O amor e as lágrimas! Horácio...
Dante
e Beatriz, Tasso a gemer no exílio!
Que
aromas de bucólicas no Lácio...
Como
deve ser bom teu sonho núveo,
Ó
doce e quieta Itália de Virgílio!...
Ó
tumultuária Itália do Vesúvio!...
VÊNUS
Quando
o seu corpo à flor das ondas veio,
Guirlandando
de espumas e sargaços,
De
tentações a vaga encheu-lhe o seio
E
a sirte, de traições, encheu-lhe os braços...
Por
todo o mar houve um supremo anseio
Quase
humano de beijos e de abraços
O
sol, de luz e de calor mais cheio,
Fulgiu
mais alto nos celestes paços!
Algas
e espumas, sem querer, teceram,
Juntas,
um berço de ideal cambraia,
E
o seu corpo de aurora receberam...
...
Nunca o mar vira tão celeste flor!
Quando
o seu corpo foi beijar a praia,
A
própria rocha estremeceu de amor!
ROSAS,
ROSAS, ROSAS...
Rosas
no céu, rosas nas cercas, rosas
Nos
teus ombros e rosas no teu rosto,
Rosas
em tudo, e há chagas veludosas
De
rosas cor-de-rosa no sol-posto...
Florescem
rosas de ais, maravilhosas
Nas
róseas fontes, rosas no recosto
Dos
róseos montes se debruçam! Rosas
Em
abril, em maio, em junho, em julho e em agosto!
Se
há noivados há rosas nas redomas
Dos
altares e há rosas invisíveis
Difundindo,
no azul, róseos aromas!
Se
morre um anjo, às brancas nebulosas,
Leva,
entre as mãos de rosas marcessíveis,
Rosas,
fechado num caixão de rosas...
EQUATORIAL
Boiam
verdes lodões no lago quieto em friços
De
topázio. Flechando as ralas talagarças
Dos
ramos vibram, no ar, os vírides caniços
Dos
juncos. Funde a luz as nuvens de oiro esgarças.
Sobre
o lodo escorrega o musgo a renda. Em viços
Soberbos,
o esplendor das aquáticas sarças
Beira
o líquido espelho em que, de espantadiços
Olhos,
banham-se, ao sol, as branquicentas garças.
Trapejam
no horizonte uns trêmulos farrapos
De
púrpura. Babando, entre os juncos, disformes
De
luxúria, a coaxar, pulam, glabros, os sapos.
E,
na lama, que a lesma azul meandra de rugas,
Rojando-se,
em espirais de gelatina, enormes
Arrastam-se,
pulsando, as moles sanguessugas...
(Estatuetas/1909)
BAIXEL
SEM RUMO
De
vaga em vaga, como um curvo esquife
De
onda em onda, a vencer um mar em fúria,
Meu
sonho, as velas em cruel penúria,
Bateu
do amor no intérmino arrecife...
Que
a velha nau, do mar à eterna injúria,
A
quilha contra as rochas espatife
E
os mastros, como o pico Tenerife
Altos,
de cor homérica e purpúrea!
Desejos,
ó gajeiros meus! à adriça
A
bandeira tremente de perdidos,
Enquanto
o mar em fúria se espreguiça!
E,
ó alma em desespero, que naufragas,
Morre,
e os teus sonhos boiarão sentidos,
Como
as medusas sobre a flor das vagas...
AS
ÁRVORES
Quando
a canção da tarde de oiro e arminho
Envolve
a terra e o céu num só gemido
As
solitárias árvores, baixinho,
Conversam
como nós. Moças, sentido!
Diz
uma que de beijos no caminho
Anda
um rumor perpétuo desparzido,
Ao
que outra diz, a rir, quietando um ninho,
Que
abraços longos mil têm surpreendido.
E
as aves das agrestes solidões
Ouvem
tranquilas tudo, e vão bordando
De
segredos as sedas das canções...
Sentido!
E o brando olhar mais aguçado,
Que
o que dizeis e murmurais baixinho,
Moças,
sabem-no as árvores. Cuidado!
SAUDADE
Saudade.
O sol a se esconder. O gado
Descendo
a serra longe entre mugidos
Tristes.
A voz do córrego anilado
Enchendo
a tarde branca de gemidos.
Saudade!
Eu pequenino. O olhar sagrado
De
minha irmã contando a meus ouvidos
A
história de algum Rei Moiro encantado
À
voz das rolas dos sertões perdidos...
O
velho alpendre à mansa claridade
Do
luar como em sonhos, despontando
Entre
as saudosas árvores. Saudade...
A
mãe-da-lua as queixas desfiando
E
minha mãe branquinha de piedade,
Diante
do altardo Bom Jesus rezando...
(Vitórias
Régias/1911)
DE
CHARLES BAUDELAIRE
Ó
alma sonhadora! alma incontida,
Que
adoras tu, no pélago da vida?
A
quem já deste inteiro o coração?
À
tua Mãe? a teu Pai? a teu Irmão?
–
“Nem Pai nem Mãe nem mesmo Irmão no mundo tenho...”
– E amigos, ó cético profundo?
–
“Amigos! Quanta louca e pobre fantasia!
Já
encontraste tu amigos algum dia!”
–
“E tua Pátria?”
– “Não sei onde está situada!”
–
“A Beleza?”
– “Imortal seria a minha amada!”
–
“E o oiro?”
– “O oiro: Agora os pensamentos
teus!
Abomino-o
também como abomino Deus”.
–
“E que amas, então, Alma de crença exul?”
–
“As nuvens lá do céu! as nuvens lá do azul!”
(In Leopoldo de Matos/Manaus, 11.dez.1912)
[1]Antologia
dos poetas brasileiros: poesia da fase simbolista, Rio de Janeiro,Tecnoprint
Gráfica, 1967.
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