Padre Servídio e a antiga Matriz de Barra do Corda

O historiador Galeno Edgar Brandes, em “Barra do Corda na História do Maranhão”, pg. 122, afirma:

“Data, pois, de 1870, o início da construção da antiga matriz da Vila de Barra do Corda”.

Como se depreende do próprio contexto, esta informação foi extraída do “Dicionário Histórico-Geográfico da Província do Maranhão, de César Marques, que, em sua 3ª edição, à pag. 106, declara:

“Por uma correspondência publicada no País, de 24 de fevereiro do corrente ano [1870, conforme 1ª edição], soubemos que aí há pouco tempo se constrói num largo uma igreja com boas madeiras que disputam a duração aos muros de pedra e cal, não estando ainda as suas paredes tapadas de barro, senão as da capela-mor”.

No entanto, no “Diário do Maranhão”, de 7 de junho de 1882, um morador, lúcido e consciencioso, declarou:

“Não temos igreja, uma capelazinha, velha e em mau estado, é o lugar em que se celebra os ofícios divinos”.

E continua:

“Tivemos a felicidade de vir da freguesia do Mirador o padre Joaquim da Silva Mourão, que se acha entre nós, e que com um sacrifício e uma dedicação verdadeiramente evangélica, conseguiu fazer um leve reparo na igrejinha, em que, com a pompa e a concorrência que é possível esperar desta tão esquecida terra, se tem festejado o mês da virgem Maria”.

Curiosamente, em nenhum momento este morador menciona a monumental construção inacabada da antiga Matriz, supostamente iniciada em 1870, segundo “soube” César Marques, como o fez, por exemplo, no caso da antiga cadeia, o que reforça a hipótese de que tal construção ainda não havia sido iniciada:

“Temos uma cadeia que nada mais é do que uma choupana de taipa, sem comodidade e segurança alguma; e, não obstante isto, nenhum andamento tem tido um prédio para esse fim, solidamente principiado desde 1862”.  

O “Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial”, de 1859, pp. 224-225, informa-nos que, em junho do ano anterior, 1858, “particulares edificaram uma pequena ermida de madeira[1], onde já foram feitas as festas do Espírito Santo, Santo Antônio, e a recepção do Visitador do Bispado, e em dezembro fez-se a festa da Virgem e Mártir Santa Filomena”. Dá-nos notícia, também, de que, àquele tempo, Barra do Corda possuía apenas duas praças, “uma à margem e barra do Corda, chamada da Matriz[2]; e a outra à 20 e tantas braças de distância, ao centro, chamada de Santa Filomena[3], por ser nela que se há de edificar a projetada igreja de Santa Filomena” (grifo meu).

O mesmo “Almanak”, de 1864, p. 383, informa-nos que, até àquele ano, a referida capela ainda estava “em projeto”.

Por outro lado, o jornal “Porto Livre”, nº 72, de 18 de abril de 1863, traz o protesto de “Um Cidadão Amigo da Ordem Pública”, que nos revela uma obra inacabada:

“A única casa de oração, que aqui temos, foi construída à custa dos particulares, porque as verbas designadas para a fatura da Matriz nunca se deram!… Não obstante, têm os moradores deste município se cotizado para a fatura de uma igreja, à invocação de Santa Filomena, com que se esbarrou em falta de recursos para a concluir”.

Esta informação, se não desmente a declaração do historiador César Marques, ao menos sugere uma data muito mais pregressa para o início da construção da antiga matriz da Vila.

Diante de tantas discrepâncias em torno do seu início, certo é que a conclusão do projeto seria ainda por decênios protelada, até a chegada na Vila do Rev.mo padre Anunciato Servídio, a quem coube a retomada dos trabalhos e, por fim, a inauguração da tão aguardada Matriz.

Sobre a saga que constituiu a edificação desta tão grande obra e o ministério sacerdotal desempenhado pelo padre Servídio em Barra do Corda e outras localidades, transcrevemos, na íntegra, o que deixou registrado, na “Pacotilha”, de 21 de janeiro de 1891, “os barra-cordenses agradecidos”:

Tributo ao mérito

Ao padre Anunciato Servídio

Acaba de deixar-nos imersos nas saudades e boas recordações o insigne cidadão e virtuoso sacerdote Anunciato Servídio.

Nós, que tivemos a felicidade, não só de gozar as suas amistosas relações, como de admirar a grandeza dos seus nobres sentimentos e ainda a incomparável lucidez do seu bonito talento, à par de sua admirável identificação com a Bíblia, não podemos deixar de dar público testemunho dos sentimentos de amizade, gratidão e respeito ao conjunto dos sentimentos grandíloquos que formam o seu bondoso coração e o seu bem constituído cérebro.

A vila da Barra do Corda, essencialmente cristã, acaba de presenciar o espetáculo maravilhoso produzido pela sábia e bem tangida palavra da religião do Grande Cristo, pelos lábios do padre Anunciato.

Este sacerdote, cuja palavra poderíamos chamar – palavra de ouro e cuja lógica poderíamos também dizer – lógica de ferro, com tais e tão poderosos elementos atraiu para si a admiração, respeito e veneração de todos os habitantes desta modesta comarca.

Com o seu trabalho insano, não poupando sacrifício de espécie alguma, pôde conseguir que fosse dotada esta vila de uma Igreja digna da religião que professamos e com essa igreja dotou-nos com um edifício cuja construção é um modelo arquitetônico.

A Barra do Corda acaba de provar que, apesar de sua humildade e pobreza, sabe compreender e cumprir os seus deveres, sabendo trabalhar e fazer sacrifícios.

Era digno de ver-se o calor e entusiasmo desse povo, logo que esse calor e entusiasmo eram avivados pela circunspecta palavra do padre Servídio.

O sexo fraco, que antes deveríamos chamá-lo – sexo forte – nunca poupou esforços, nunca desprezou a luta em que tão generosamente, tão galhardamente envolveu as suas forças.

Não eram somente os sentimentos grandes, enormes mesmo, que compõem o coração feminil, que obravam, falava especialmente às suas cândidas e puras almas o doce sentimento da religião.

Os homens, esses conjuntos de forças, musculatura e vontade, representaram também o seu papel, digno de nota. Incontestavelmente, porém, a quem coube maior soma de louros, foi ao padre Anunciato.

Findos os recursos pecuniários de que dispunha a comissão encarregada das compras e custeio do material e serviços da igreja, daqui partiu o padre Anunciato para os arredores deste termo, fazendo prédicas e angariando donativos, conseguindo grande quantidade dos mesmos, que vieram dar um impulso aos ditos trabalhos.

Na tribuna sagrada, aqui nesta vila, ocupou ele a atenção de todos nós por mais de trinta dias consecutivamente, nunca se mostrando cansado, nunca poupando ocasião para chamar os fiéis ao cumprimento dos seus deveres, conciliando sempre os interesses da nossa religião com as leis da nossa República.

Ainda tendo faltado os recursos para o acabamento das mesmas obras, não trepidou o padre Servídio em sair de novo, a nosso pedido, a angariar donativos, tendo conseguido grande número destes, com cujo resultado estão as obras bastante adiantadas. Quanto amor pela santa causa da nossa religião! Quanto desinteresse!

A religião católica, apostólica, romana, que nas condições atuais das coisas públicas da nossa grande, vigorosa, se bem que infante República, vai atravessando uma quadra dificílima, não deve e nem tem mesmo motivos para temer qualquer estremecimento em seus alicerces, uma vez que tenha sempre e em todos os lugares, pastores com as qualidades do preclaro sacerdote Anunciato Servídio.

Neste nosso Estado tem esse pastor prestado os mais relevantes serviços à causa da nossa santa religião. Sendo vigário da freguesia de Vitória do Alto Parnaíba, dali se tem dirigido a vários lugares, onde tem edificado várias igrejas e cemitérios.

Na sua freguesia edificou a belíssima matriz que ali se ostenta garbosa; outra na freguesia de Loreto, não menos bela; outra na antiga povoação de S. Félix de Balsas; ainda outra em New York, além dos cemitérios em Loreto e S. Félix.

Segue agora o incansável sacerdote para a cidade do Grajaú, para onde foi convidado pela população para também edificar ali um templo, tendo já recebido idêntico convite e para idêntico fim, pela comarca do Riachão.

O padre Anunciato não se limita aos trabalhos materiais, ele dispõe também de uma coleção de escritos seus, sobressaindo, entre estes, “La dignità sacerdotale”, “Os padres casados”, “A religião católica, apostólica, romana, desde Adão até Leão XIII”, só tendo saído à luz da publicidade, desta última, a primeira parte, que trata do Mistério da Santíssima Trindade. Todas essas obras foram publicadas da cidade da Escada, em Pernambuco, de 1881 a 1882.

Acha-se o padre Anunciato neste Estado desde 1886.
Por tudo quanto temos exposto, conclui-se claramente que o padre Servídio é um sacerdote insigne, além de ser um homem verdadeiramente destinado para os grandes cometimentos em prol da santa causa da religião.

Com relação aos serviços de nossa bela igreja, devemos, no presente escrito, salientar aqueles que foram generosa e arduamente prestados pelos cavalheiros seguintes:

Padre José Alves Bezerra, vigário da freguesia; Cândido Francisco Xavier Maia, Manoel Ferreira de Melo Falcão, Frederico Pereira de Sá Figueira, e o octogenário e venerando ancião Vicente de Albuquerque Maranhão, que, apesar de velho e pobre, teve a feliz lembrança de, às suas expensas, mandar fazer, sob sua direção, o frontispício do suntuoso templo.

Por tal fato, que despertou no ânimo da população verdadeiro entusiasmo, reuniu-se grande massa de povo, logo que foi dado sinal de que aquele frontispício estava pronto e acabado, dirigindo-se para a igreja, onde se achava o distinto ancião, cumprimentaram-no e o saudaram, ao que respondeu e agradeceu comovido aquele cidadão.

Em 6 do vigente, pelas 4 horas da madrugada, Rev.mo padre Anunciato, ao lado do seu colega, o Rev.mo padre Bezerra, fizeram o benzimento da igreja, celebrando, em seguida, a primeira missa, o que tudo foi feito com toda a pompa e verdadeiro regozijo e paz.

Ao padre Anunciato devemos principalmente tudo, e, portanto, ainda uma vez, saudosos e penhorados, fazemos constantes votos ao Altíssimo pela sua felicidade completa.

Barra do Corda, 8 de outubro de 1890”.





[1]Visto que desde a Lei Provincial nº 252, de 30 de novembro de 1849, criara-se a Capela Curada em Barra do Corda, trata-se aqui de uma construção posterior ou mesmo de uma reforma à antiga capela, o que parece mais provável.
[2] Ao longo dos anos, outros nomes foram a ela atribuídos, como “Praça da Independência” e “Praça Getúlio Vargas”. Abrangia, à época, toda a área ocupada hoje pelo Shopping Popular (Centro de Comercialização Pedro Cândico), Edifício Machado e Mercado Público Central.
[3]Onde hoje localiza-se a “Praça Melo Uchoa”.

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